As causas e efeitos das bengalas

por | 3 abr, 2013 | Turismo Adaptado | 4 Comentários

Saio do táxi. Bato a porta. “Cuidado com a guia”, me diz o motorista. Sinto a guia com a bengala. Meço a altura do passo, ergo o pé direito e subo na calçada. Pof! Atropelam minha bengala, minha bengala nova, comprada há menos de um mês!

A bengala cai na calçada. Fica torta, arqueada como um berimbau. Os passos de quem a pisou não param, não dão meia-volta. Com ela encurvada, tateio tortamente até a entrada do metrô. Naquele início de noite de sexta, ainda me encontraria com os amigos cegos Tiago e Raí. Depois, dissolveríamos a semana em um copo de cerveja.

Na estação, procuro as catracas com meu arco sem flecha. Acho uma, passo o cartão sobre o sensor, e faço a barra girar com um leve movimento de coxa. Em seguida embarco, com o auxílio do funcionário. “É, sua bengala tá bem torta!”, disse ele.

Na estação combinada, Encostado em uma coluna perto das catracas, espero dez, quinze, vinte minutos. Nada de Tiago nem de Raí. Segui ali, alternando o peso do corpo, e revezando as mãos que seguravam a bengala, ferida e triste como um berimbal sem capoeira.

Olhando para aquela meia-lua, sem graça como as praias sem luar, pensei nas diversas reações que ela provoca nas pessoas:

Na rua, quando olham o cabo branco da bengala, muitos correm para oferecer uma das mãos, mesmo quando as duas seguram sacolas de supermercado. Mas Nem sempre sabem nos guiar. Às vezes nos puxam ou nos empurram, como zagueiros agitados à espera do escanteio.

A cada encontro, ajudados e ajudantes sempre saem com uma história nova. Às vezes, começam a escrever outra. Algumas pessoas que primeiro observam a bengala, deixam o olhar cair sobre o rosto de quem a manuseia, e acabam se surpreendendo. Descobrem que assim como elas, também temos cravos no nariz, espinhas na testa e covinha no queixo.

Certos encontros, possíveis apenas graças à bengala, seguem para um bar ou restaurante. Ali, enquanto histórias, pasteizinhos e vinhos são postos sobre a mesa, ela, dobrada, descansa recostada no pé da cadeira, com a educação de quem sabe que não está mais na conversa. Às vezes, porém, dominada por um ciúme colérico, ela se solta do elástico que a prende, se desdobra no chão, e atinge, por debaixo da mesa, o pé de quem a avistou. “Me desculpe, foi minha bengala”, diz o cego, enrubescido pela vergonha, mais do que pelo vinho.

Mas não são todos que saem nos oferecendo ajuda. Há os que preferem apenas observar o cego e sua bengala, como se contemplassem o quadro de um guerreiro empunhando a espada, em sua cavalgada cega de ginete. “Guerreiro”, É assim que nos veem. Mal sabem que nossas bengalas não têm o pontiagudo da espada, tão pouco têm o poder de provocar sangue. A não ser que esqueçamos um dos dedos entre seus gomos na hora de dobrá-la.

As bengalas podem ser de alumínio ou de fibra de carbono. Alguns cegos, no entanto, preferem improvisar, e saem com cabos de vassouras ou bastão de caminhada. “É mais barato”, me disse um amigo que utiliza o bastão.

O tamanho das bengalas também varia. Quanto mais alto for o cego, mais gomos sua bengala vai ter. Elas ainda podem ser de ponta lisa, ou ter um disco na extremidade. Com o disco, ou soleira, o cego desliza silenciosamente a bengala, ao invés de batê-la. Porém, a bengala calada pode causar acidentes, caso outro cego, que também tenha a bengala emudecida, esteja vindo de frente. É como dois carros negros de faróis apagados, vindo na direção contrária, em uma estrada interiorana sem olho de gato, e sem uma lua que ilumine.

Aos poucos, começam a surgir bengalas personalizadas. Algumas já trazem os símbolos dos times, por exemplo. Penso que em breve, assim como motoristas adesivam seus carros, e caminhoneiros fraseiam seus pára-choques, os cegos vão começar a passar mensagens por meio do cabo da bengala. Os cegos emos poderiam escrever frases como “O que os olhos não vêem, o coração sente”. Já os mais perversos, escreveriam “Se o amor é cego, então vamos apalpar”.

A bengala não só é um instrumento, como um adereço. Seu manuseio pede elegância. Ela deve ser dobrada ou encostada, com a mesma classe com que o malandro tira o chapéu, ou com que o detetive pendura o sobretudo nas costas da cadeira. E por que não criar bengalas de grife, dos tipos “Steve Wonder” ou “Andréa Bocelli?”. E para os que preferirem um modelo nacional, que tal “Bengalas Geraldo Magela”?

Nada de Tiago, nada de Raí. Aperto o botão de meu relógio que fala as horas, para saber a quanto tempo já espero. Ergo os ponteiros na altura do ouvido, e vejo que mais de meia-hora se passou. Segui pensando na bengala, e em suas causas e efeitos.

Dentre todos os tipos que a observam, as crianças são um caso a parte. Certa vez, uma menina, comentou com a mãe, ao ver um cego cruzar a rua: “Mãe, ele tá batendo o olho no chão!”

Os curiosos, por sua vez, são aqueles que vêem a bengala como um enigma. Se perguntam quem são os seres que ela guia: “Onde vivem?, como vivem?, Como fazem?, Será que fazem?”

Para nós, a pergunta que mais nos fazem é: “É verdade que vocês ouvem melhor que os outros?”. Esta é um clichê. É tão comum em nossos ouvidos, como o gerúndio na boca dos operadores de telemarketing.

Mas, os piores mesmo são os que não olham a bengala, e após derrubá-la, insistem em não vê-la. São os mais imundos da sociedade, piores que a sujeira que se acumula na ponteira da bengala, no fim de tarde de um dia de tatos.

Raí chega. Desabafo com ele. Ele me entende, também é cego, assim como Tiago, que instantes depois também chega. Após nos abraçarmos, ele nos pede: “Gente, vocês vão ter que me guinchar!”. “Guinchar? Como assim?”, pergunto.

– Minha bengala quebrou!

– Quebrou mesmo?- Pergunto

– Quebrou no meio!

– E como que quebrou?

– foi um filho da p… Na rua! Nem pediu desculpas!

– Sério? A minha um maldito acabou de entortar! Também nem pediu desculpas!

– Malditos!

– Sim, malditos!

Com sua bengala intacta, sobrou para Raí nos conduzir até o bar.

Fonte: Revista Incluir

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4 Comentários

  1. Bianca

    Texto muito bom!!! Divertido e verdadeiro.

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