Por Fausta Cristina

Há pouco tempo, passei uma grande temporada em Londres. Oito meses vivendo na capital inglesa me valeram uma marcante lição de vida e, embora eu não consiga reduzir esta experiência a um relato de algumas linhas, adoraria contar um pouco do que vivi neste texto.

Nas ruas de uma capital que tem mais de dois milênios de história, o que se vê é uma mistura de gente de nacionalidades, credos, raça, gostos e valores muito diferentes, dessa forma, a diversidade é a característica que mais significa Londres, para mim. Certo dia, vendo que minha filha com autismo falava em português com uma inglesa, tratei logo de explicar: “desculpe, ela tem autismo” e a reação daquela pessoa me desconcertou, ela olhou pra mim com naturalidade e perguntou: – e…?

Não importava o autismo ali, para ela era uma criança que a abordava de maneira inocente, acreditando que seria compreendida em seu idioma nativo, mesmo sendo ela uma total desconhecida, não era preciso justificar, tudo se resumia a um sorriso de aceitação e a mágica de um contato que prescinde o uso da linguagem verbal. E foi o que aconteceu quando eu relaxei, me despi do meu próprio preconceito e deixei que as coisas fluíssem com naturalidade.

Foi experimentando essa ausência de julgamentos que percorri lugares, visitei parques, museus, galerias de arte e restaurantes. Convivi com nativos, turistas, residentes, recebendo sempre apoio, ajuda, acolhimento em todas as situações sem que isso me fizesse sentir diminuída. Foi como se nunca houvesse os valores: diferente e normal, como se sempre fosse assim, cada qual com o seu diferente.

Não, não se trata de um lugar de pessoas perfeitas, claro que não. Estamos ainda falando de pessoas e sempre tem gente boa e não tão boa, em tudo que é lugar, mas estamos falando de uma sociedade que se construiu nas diferenças, pois Londres ainda no século I D.C era um lugar para onde se enviava os mais diferentes povos escravizados pelo vasto império romano e se fez assim como lugar de encontro de culturas diferentes e, por isso, o que se vê é gente muito estranha convivendo com gente muito comum sem nenhuma afetação.

Na televisão, esta diversidade está presente em todos os programas, âncoras de importantes telejornais tem alguma deficiência, os programas infantis sendo apresentados por pessoas sem o braço, cadeirantes, sotaques diversos e isso, a meu ver, faz uma base cultural em que o diferente está incluído a despeito de uma forte tradição inglesa que se perpetua há séculos.

Por lá, a família tem costumes, tem valores que são repassados de pai para filho como por exemplo, o amor à jardinagem. Inglês que se preza tem jardim nem que seja em vasos e por isso é comum vermos os pais levarem seus filhos às lojas de jardinagem, às oficinas de jardinagem e passarem tempo com seus pequenos revolvendo a terra e plantando flores. Isso só pra dizer que aceitar o diferente não significa perder de vista um padrão que preserva costumes e tradições.

Por lá, ninguém se refere ao outro como “o fanho”, “o manco”, “o gago”… um amigo inglês achou estranhíssimo quando perguntei se deveria colocar um adesivo que indicasse que minha filha tem autismo, para que as pessoas não interpretassem de forma equivocada seu comportamento dentro de um museu. Ele me disse que seria muito mal visto destacar o autismo, seria como colocar um rótulo e que por mais que  o comportamento dela fosse inadequado, ninguém iria me julgar.

Eu sei que nós brasileiros somo fantásticos em nossa alegria, na forma como abraçamos as pessoas e nos mobilizamos quando se trata de ajudar. Eu sei que temos uma cultura que também foi construída na diversidade, também sei o quanto somos um país novo e como estamos crescendo nesta caminhada de superação dos preconceitos, mas sei também que podemos – e devemos – avançar ainda mais.

Neste percurso onde valores são cultivados no campo das individualidades que acessam uma cultura comum, nós podemos de forma particular contribuir muito. Não há grupo sem indivíduos, não há conjunto sem elemento. A soma de todos nós faz o coletivo em que atuamos, damos e recebemos, sustentamos e somos sustentados. A vaga da escola negada significa uma família a mais a sofrer. Alguém que sofre, afeta outras pessoas e estas pessoas, muitas vezes, se tornam para o coletivo alguém que demanda apoio. Do indivíduo ativo ao dependente, existe muitas vezes uma falha no processo de sustentação mútua.

Que a gente possa falar mais de aceitação e trabalhar no grande desafio de incluir. Por mais que eu bata nesta tecla, a vida se encarrega de me conduzir pelas paisagens que me mostram que ainda não é hora de parar de gritar: Diferente, é o mundo que queremos!

Fonte: Vida Mais Livre

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