Um único passeio pelo supermercado é o suficiente para constatar que a presença de pessoas cegas pelos corredores desses estabelecimentos comerciais só é possível graças à ajuda de alguém para auxiliar nas compras. Embora o Sistema Braille não se configure como estereótipo da cegueira, é através dos rótulos e embalagens que o público consumidor entra em contato com o produto que deseja adquirir, devendo ser assim também para quem não enxerga.

Não se trata de replicar um “mundo” para os cegos, mas oferecer-lhes condições de consumir produtos com autonomia, possibilitando a esse público identificar as informações mais importantes veiculadas nas embalagens. Isso só será possível a partir da adoção de medidas específicas, tais como inscrição em Braille e embalagens com formatos ou texturas diferenciadas. A embalagem é um fator que complementa uma marca e, por isso, precisa comunicar ao consumidor sua identidade com objetividade e clareza.

As embalagens de caixa do tipo cartucho de papel grosso e papelão – geralmente conhecidas como embalagens secundárias por não entrarem em contato direto com o produto – apresentam as condições ideais para aplicação do Braille e garantem o acesso à informação imparcial e de qualidade. Porém, são raros os produtos que adotam o código em relevo como o diferencial de suas marcas. Entre os fabricantes que já adotam as embalagens acessíveis, destacam-se Natura, Sadia, Nestlé, Melitta, Nutri e produtos do Grupo Pão de Açúcar.

Geralmente, as embalagens informam em Braille o nome do produto, peso ou quantidade em unidades e o número do serviço de atendimento ao consumidor (SAC), pois o espaço disponível nem sempre é suficiente para transcrever outras informações em Braille. Isso acontece porque o código Braille ocupa um espaço grande; suas letras possuem dimensões fixas de aproximadamente 3 mm de altura por 2 mm de largura, além do espaçamento entre elas e também entre linhas. Ficam de fora, então, detalhes relevantes como data de validade e ingredientes, informações estas de extrema importância, principalmente se o consumidor tiver alguma intolerância alimentar.

Embalagens plásticas (flexíveis ou não), metálicas, latas, sachês, sacos, entre outros, já não possuem tal facilitação para impressão do relevo em Braille. Esse problema poderia ser solucionado por meio de etiquetas autoadesivas em conjunto com a diferenciação do exterior das embalagens (formato e/ou textura), obedecendo a critérios estabelecidos por normas técnicas. Apesar disso ser conhecido e reconhecido, ainda não existe uma legislação específica que determine as diretrizes para adequar impressos em relevo em cartuchos ou em adesivos para embalagens. Isso faz com que as iniciativas isoladas de rotulagem em Braille adotem suas próprias normas, trazendo para o mercado alguns símbolos Braille inadequados, como o uso da letra “k” no lugar do sinal indicativo para letra maiúscula, como nas embalagens antigas da Nestlé, por exemplo. A qualidade do relevo também é outro fator bastante questionado. Algumas marcas imprimem o Braille com pouca saliência, que pode ficar ainda mais danificado devido ao transporte e acondicionamento inadequados.

Apesar disso, o Braille tem ganhado popularidade ao sair das prateleiras diretamente para os lares das pessoas, sejam elas cegas ou não. Conviver com a escrita pontográfica é o retrato mais fiel da inclusão, além de uma forma criativa de incentivar o conhecimento da realidade de quem vê com a ponta dos dedos o mesmo que outros veem com os olhos curiosos e, ao mesmo tempo, enigmáticos.

A pessoa com deficiência visual corre o perigo de ingerir um medicamento inadequado pela falta de identificação BrailleA pessoa com deficiência visual corre o perigo de ingerir um medicamento inadequado pela falta de identificação Braille

Por outro lado, sem referências em Braille, imaginemos, lado a lado, uma lata de ervilha e uma lata de milho verde. A identificação dos produtos fica prejudicada pela semelhança entre as duas latas, que têm pesos iguais, são confeccionadas usando o mesmo material e possuem formatos idênticos tanto no diâmetro quanto na altura. Também não será possível nos basearmos na textura, já que as ranhuras nas latas apresentam sob o desenho de linhas iguais para ervilha e milho. Se sacudirmos as latas, apenas com muito treino é possível arriscar um palpite. E, por último, as latas bem lacradas não deixam o olfato entrar em ação.

As farinhas são caso à parte. É relativamente fácil diferenciar um saquinho de fubá de um saquinho de farinha de rosca, por exemplo. Por outro lado, não é nada simples encontrar o feijão branco entre todos os outros sacos de feijão nas prateleiras.

Se todas as marcas de café utilizam embalagens semelhantes e todas cheiram à café, como escolher a que queremos? Como diferenciar uma caixinha de amido de milho da de achocolatado, mesmo sendo de cartuchos de papel que poderiam ganhar pontinhos em relevo? Como saber se estamos levando para casa um creme dental ou um creme de barbear, uma gelatina de uva ou de morango? Por sorte, ainda podemos escolher o aroma do sabonete, mas a maioria das marcas de shampoo e condicionador não usa o modelo do frasco invertido para um e outro. Quando usam, diferenciam os produtos apenas pela posição do escrito no rótulo.

Ainda não percorremos todas as sessões de um supermercado, e nem precisa. Já sabemos que quase nada está acessível. Há embalagens muito semelhantes entre si para produtos distintos, confundindo o consumidor que não é atingido diretamente pela publicidade visual. A usabilidade das embalagens vai muito além da rotulagem em Braille para a garantia da correta informação. Assim, empresas também devem se preocupar com a identidade da sua marca, questionando-se sobre como uma pessoa cega poderá identificar seu produto com autonomia e segurança, sem correr o risco de virar um frasco de óleo pensando ser detergente.

Uma iniciativa de sucesso tem sido as embalagens de medicamentos com inscrição em Braille. O Ministério da Saúde, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, publicou em 2009 a Resolução RDC nº 71, um regulamento técnico que estabelece as diretrizes para a rotulagem de medicamentos, incluindo informações em Braille. A resolução pontua as exigências e estabelece que o nome comercial dos medicamentos ou, na sua falta, a denominação genérica do princípio ativo, além da dosagem, devem estar disponíveis em Sistema Braille, sem afetar a legibilidade das demais informações gráficas das embalagens. Por isso, hoje já é comum que medicamentos tragam informações acessíveis para cegos, na sua maioria muito bem impressas em cartuchos de papel cartão. A grande dificuldade, encontrada pelos cegos nas drogarias e farmácias, são os selos de identificação do lojista colocados bem em cima das letras em Braille, como se minimizassem a importância desse poderoso recurso de acessibilidade.

Conclui-se, portanto, que a acessibilidade será o diferencial de uma marca até que a concorrência também passe a adotar esse recurso, um investimento cujo retorno social vai muito além da quebra da barreira comunicacional. É o reconhecimento da cidadania, é o primeiro passo para que dois tipos de escrita estejam lado a lado em uma mesma embalagem, assim como desejamos que a diversidade conviva em harmonia nos espaços comuns. Embalagens em Braille precisam ser armazenadas adequadamente, assim como a qualidade de impressão influencia muito a legibilidade. Por fim, não deixe que a curiosidade danifique os pontos em relevo de um rótulo; use-a em favor da inclusão, pesquisando mais sobre o sistema Braille e incentivando lojistas, fabricantes e empresas a adotarem em suas embalagens a transcrição das informações em Braille.

Fica aqui um desafio: coloque nos comentários dessa postagem quais os produtos que você conhece que possuem embalagem e/ou rótulo em Braille e vamos construir uma lista de empresas acessíveis. Escreva qual a marca, tipo do produto e em qual estabelecimento encontrou. Certamente sua contribuição ajudará a mapear marcas que ainda não ganharam popularidade entre os cegos, pois talvez a publicidade visual ainda não tenha atingido esse grupo de pessoas.

Fonte: Acessibilidade na Prática

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